"Dados Pessoais como Contraprestação em Contratos de Consumo – Breve Reflexão"

Blog > Canto Jurídico > Dados Pessoais como Contraprestação em Contratos de Consumo


Todos os dias são celebrados contratos onde o produto (na maioria dos casos, os conteúdos digitais) são fornecidos ao consumidor não a troco de uma prestação pecuniária, mas sim a troco de dados pessoais. Por exemplo, pense-se nos contratos entre o utilizador de redes sociais e as plataformas de redes sociais (por exemplo, Facebook, Snapchat, Twitter), nos contratos de download de aplicações móveis ‘gratuitas’ (como é o caso da aplicação do Google Maps) ou nos contratos de utilização de websites (como é o caso da navegação no Youtube). Este tipo de contratos tem, nos últimos anos, chamado a atenção do legislador europeu. Em dezembro de 2015, reconhecendo o aumento de contratos a troco de dados concluídos por consumidores, a Comissão Europeia propôs uma Diretiva que, pela primeira vez, incluía explicitamente este tipo de contratos no seu âmbito de aplicação (Diretiva sobre certos aspetos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos digitais). Em abril de 2018, a Comissão Europeia propôs novas alterações ao Direito dos contratos de consumo europeu e, referindo-se novamente à questão de dados como contraprestação, afirmou que ‘dado o aumento do valor económico dos dados pessoais, esses serviços não podem ser considerados como «gratuitos»’ (ver, em particular, a proposta de Diretiva para uma melhor aplicação e a modernização das normas da UE em matéria de defesa do consumidor).

No entanto, de um ponto de vista jurídico – tanto legislativo como doutrinário -, não é pacífico ou claro que dados possam funcionar como contraprestação contratual. Entre vários argumentos, pense-se na perspetiva do Direito da proteção de dados. O direito à privacidade e à proteção de dados é um direito fundamental, constando, por exemplo, dos Artigos 7 e 8 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Por essa razão, de acordo com a perspetiva tradicional de Direito da proteção de dados (que transparece no atual Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), a lei não devia reconhecer ao indivíduo a possibilidade de comercializar o seu direito à privacidade. A doutrina europeia diverge sobre o assunto, apesar de, recentemente, existir uma transição notória no sentido da concordância com a comercialização de dados em sede de Direito dos contratos.

"de um ponto de vista jurídico – tanto legislativo como doutrinário -, não é pacífico ou claro que dados possam funcionar como contraprestação contratual."

A importância de desenvolver e estimular debate (académico e não académico) em torno deste tópico não pode ser subestimada: para além de, hoje em dia, um número elevado de contratos (de consumo e não só) de fornecimento de conteúdos digitais serem concluídos a troco de dados pessoais, há outros modelos de negócio emergentes que expandem a utilização de dados pessoais como contraprestação a outros contratos. Por exemplo, contratos onde se adquirem produtos ou serviços offline (e não conteúdo digital) a troco de dados pessoais. Imagine-se ‘comprar’ um café a troco de um endereço de e-mail. Para além disto, existem vários serviços oferecidos a utilizadores que queiram diretamente lucrar com base na venda dos seus dados pessoais. Alguns destes serviços funcionam como bancos de dados pessoais ou como um serviço de investimento: o utilizador ‘deposita’ os seus dados pessoais na plataforma, a plataforma encontra um comprador para os dados do utilizador (que são anonimizados e agregados com os dados dos restantes utilizadores) e o utilizador recebe, normalmente, tokens (ou cripto moedas) em troca dos seus dados (veja-se o caso da Weople). Tudo isto indica que a construção social de contratos está a evoluir, o que, por sua vez, significa que a construção jurídica de contratos ‘gratuitos’ pode (e deve) vir a sofrer uma alteração de paradigma.


"uma das dificuldades relativamente à construção concetual de dados como contraprestação é a falta de conhecimento técnico de outras disciplinas fora do Direito"

Não é difícil imaginar uma realidade próxima onde mais e mais contratos de venda de bens ou serviços sejam concluídos utilizando dados como uma contraprestação em vez de dinheiro. Contudo, para determinar o regime aplicável a contratos em troco de dados, é necessário desenvolver o conceito jurídico de dados como contraprestação. Para além disso, uma das dificuldades relativamente à construção concetual de dados como contraprestação é a falta de conhecimento técnico de outras disciplinas fora do Direito, como data science, inteligência artificial ou engenharia informática. É cada vez mais importante que o jurista adote uma perspetiva interdisciplinar e que entenda, neste caso, o processo de recolha de dados, de tratamento dos dados, o funcionamento dos modelos de negócios baseados na venda de dados pessoais e os meios de financiamento de comerciantes que adotam esses mesmos modelos de negócio.

Blogpost adaptado do artigo ‘Dados Pessoais como Contraprestação em Contratos de Consumo – Breve Reflexão’ publicado no Anuário do NOVA Consumer Lab 1/2019.
Publicado no dia 22/10/2020 por Madalena Narciso