"A asfixia da liberdade e a erosão dos direitos humanos"

Blog > Escrita Criativa > A asfixia da liberdade e a erosão dos direitos humanos


A tolerância do pluralismo permite a coabitação, mais ou menos pacífica, de várias comunidades religiosas nas ruas de Nova Deli. Alguém que passeie por uma rua movimentada pode, dando apenas alguns passos, observar o espectáculo visual de uma majestosa mesquita, depois de um templo hindu, e até de um templo Sikh, religião monoteísta e cujo templo principal – o templo dourado – local de peregrinação dos Sikh, é uma bela e luxuriante atracção.

As pessoas de todas estas religiões partilham a sua cidadania, são indianos. Partilham o país e atravessam as mesmas ruas para chegar aos seus respectivos locais de oração. Observar a coabitação de gente tão singularmente devota, em credos diferentes, é tão comovente quanto pedagógico. Vivem numa democracia. Esta democracia, chamada a maior democracia do mundo, tem algumas falhas, desde logo um presidente nacionalista hindu que tem subtilmente, e agora ostensivamente, adoptado medidas incendiárias que perpetuam o sentimento anti-muçulmano. Por exemplo, a nova lei da nacionalidade permite que aos refugiados hindus e sikh – mas não os muçulmanos -, perseguidos no Paquistão, que lhes seja concedida a nacionalidade indiana. Tem também mantido a tensão militar no estado de Jamu e Caxemira. Tem havido cada vez mais relatos de diminuição das liberdades civis e políticas no país, o que é um sinal de alarme. Um exemplo recente é o da detenção da activista Disha Ravi, de 22 anos. O filme The White Tiger, de Ramin Bahrani (na Netflix) mostra, com um humor e realismo incisivos, as incongruências e vícios da democracia indiana, ilustrando as teias de influência entre a política e o poder económico com o caso da corrupção de uma política no filme intitulada de "a grande socialista”. Revela ainda como é difícil a vida de alguém que nasce numa pequena aldeia e que ambiciona trabalhar e melhorar as suas condições de vida. Esta pessoa, o protagonista, não pode almejar a mais do que passar a reforma num slam nos arredores de uma grande cidade. É um sistema de exclusão cruel e directa, pouco livre, e que convida à corrupção. Mas as pessoas ainda votam.

"Toda a opinião é um delito, mesmo que seja apenas inocentemente descontente."

No Egipto, o sistema de Abdul Fatah Al-Sisi, presidente desde 2014, vive da opressão e violência. O Cairo tem uma atmosfera borbulhante, de perigos obscuros e possibilidades negras. O ambiente é de crispação constante, de contenção dura - perceptível na azáfama das gentes, no tom gutural do árabe gritado, e nas incessantes buzinadelas - prestes a estalar de forma definitiva e implacável. As pessoas não são livres. A não ser que concordem com o governo, o presidente, e que frequentem determinados círculos. Serão, também essas, livres? A juventude cresce com uma consciência política aguçada, assente na revolta e restrições que sentem todos os dias. Principalmente se tiveram a oportunidade de visitar um país europeu, almejam para aí emigrar definitivamente. O conservadorismo religioso e social, que determina certos comportamentos e atitudes, vive num antagonismo directo com a velocidade da internet, a globalização dos conteúdos e do acesso à informação, o que gera um conflito permanente. Os rapazes têm de passar por um longo serviço militar obrigatório, onde suportam condições cruéis. As raparigas não podem sonhar sair de casa dos pais sem ser à boleia de um casamento. Muitas não podem pensar em não usar o hijab, e as que o fazem enfrentam grande ostracização e reprovação dos seus pares e em geral, vendo logo a isso associada uma certa vulgaridade ou leviandade, e não um acto de individualidade inócuo. Liberdade, só à lupa. Mesmo a liberdade interior é difícil. Pude observar que o autoritarismo e a repressão originam pessoas doentes, e têm como consequência sociedades doentes, embutidas em vícios virais que se alimentam e propagam a si mesmos. No Egipto não existe liberdade, logo não existem direitos humanos. Não existem direitos humanos, logo não existe liberdade. Toda a opinião é um delito, mesmo que seja apenas inocentemente descontente. A asfixia do pensamento e a constante vigia – à data, em 2018, não era mesmo aconselhável falar-se mal do governo em locais públicos - invocam uma claustrofobia orwelliana agora sentida na prática. Assustador. A não esquecer.

"Cai-se no extremo da extrema sensibilidade do "quem não pensa como eu, não pode nem deve pensar". Intolerância."

O suave e aparentemente inofensivo arrepio do caminho do progresso em prol dos direitos humanos, e de sociedades livres e prósperas, é preocupante. A pouco e pouco, questionam-se os princípios em que assentam as sociedades ocidentais modernas, a nossa. Os direitos humanos podem agora ser vistos como doutrina ideológica desta ou daquela orientação política, ou seja, já não são universais, são só se se quiser. Primeiro, a proibição de discriminação deixa de ser absoluta. Já é permitido discriminar, este por ter esta raça, aquela por ser mulher, o outro por ser estrangeiro. A retórica do nós contra eles, das grandes diferenças ultrajantes e inultrapassáveis, em que uns afirmam a superioridade imaculada quanto a outros, caindo na desconfiança cultural, começa a medrar no adubo do populismo. Depois, como reacção a isto, é a liberdade de expressão que começa a ser posta em causa. É melhor anular, calar, prender e silenciar quem tem estas ideias peregrinas. Mas não é aconselhável que a exaltação e o asco levem à utilização de expedientes igualmente perigosos. Cai-se no extremo da extrema sensibilidade do “quem não pensa como eu, não pode nem deve pensar.” Intolerância. Morde-se o isco. E assim se vai andando, depois disto discutindo a admissibilidade da pena de prisão perpétua, admitindo que o arrepio civilizacional é justificável por uma nostalgia punitiva qualquer e com graves consequências para a dignidade da pessoa humana e para a ressocialização dos condenados. Daqui em frente são três passos até cair o direito a não ser sujeito a tratamentos desumanos e degradantes, o direito à liberdade, a liberdade de expressão e associação, reduzem-se os deputados, pede-se que não haja escrutínio público ao governo, e por aí fora. É um caminho belíssimo na autoestrada da degradação da democracia liberal. Há uma brisa no ar que cheira ao pó da asfixia do Egipto. Esperemos que seja uma brisa passageira e que a maioria das cabeças se recorde de que os direitos humanos não são doutrina ideológica, e que pô-los em causa equivale a pôr em causa o equilíbrio frágil de uma sociedade arejada, saudável, desempoeirada e livre.

Publicado no dia 23/03/2021 por Luzia Prata