A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende

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Acabei de ler, finalmente, a casa dos Espíritos de Isabel Allende. Não foi, de todo, uma leitura rápida. Laborei pelas páginas do livro durante várias semanas. No entanto, como seria de esperar pela autora que o escreveu, foi definitivamente um livro que me entrou diretamente para a alma – um desses livros que considerarei como mais uma pedra basilar da minha personalidade – sim, porque a minha personalidade não é mais do que um conjunto emaranhado dos livros com os quais me fui cruzando ao longo da vida.

Isabel Allende conta a história de uma família através de diversas gerações. Ela começa pela descrição da vida dos bisavós, e segue, com detalhada atenção, os percursos de cerca de 10 personagens. A escritora foca-se, claramente, mais numas personagens que outras, mas todos os membros da família são apresentados ao leitor ao pormenor, o que os move, o que temem, as suas ambiguidades, contradições e excentricidades das suas personalidades... Este desfile de personagens ao longo das cerca de 500 páginas do livro nunca é, porém, sem sentido. As personagens estão todas interligadas, e é uma interligação que suplanta as estritas teias do tempo. As ações de Nívea, a bisavó, irão influenciar as decisões de Alba, a bisneta. E a decisão do avô de, em jovem, perseguir sem pudor centenas de camponesas sem qualquer peso de consciência, irá, três gerações depois, impactar o rumo de toda a família. Embora a história esteja escrita cronologicamente, saltando de geração em geração de acordo com o nosso entendimento linear do tempo, os diversos acontecimentos da história são, na verdade, circulares e contíguos, e intimamente dependentes uns dos outros.

"demonstrando como a ideologia, quando seguida cegamente, se pode, facilmente, virar contra nós, contra aqueles que mais amamos e contra o que verdadeiramente nos dá vontade e ânsia de viver: as pessoas na nossa vida, e, em particular, a nossa família. "

Para além desta fantasticamente bem-sucedida experiência com a complexidade do tempo, e com a influência de umas gerações nas subsequentes, Allende também analisa, da perspectiva de diversos membros da família, os companheiros (ou súbditos) de cada um deles, e o clima político do país.

Nunca sabemos, ao certo, que país é, embora seja fácil de adivinhar a realidade que influenciou Allende. A História que nos é contada é certamente semelhante àquela que a própria Allende terá vivido. Uma História de décadas de controlo do partido conservador, de latifundiários paternalistas perante os seus trabalhadores, e de desigualdade e desrespeito pelos povos indígenas. Houve um breve interlúdio de um governo socialista, cujo nascimento vamos acompanhando através das diversas personagens idealistas, revolucionárias ou, também, conservadoras e reacionários, como o patrono da família. E, por fim, a queda deste governo, ainda imberbe, devido à influência dos conservadores e dos ‘gringos’, levando à imposição de uma ditadura militar. Allende relata estes eventos da perspectiva dos diferentes membros da família, humanizando cada um deles independentemente da sua inclinação política, e demonstrando como a ideologia, quando seguida cegamente, se pode, facilmente, virar contra nós, contra aqueles que mais amamos e contra o que verdadeiramente nos dá vontade e ânsia de viver: as pessoas na nossa vida, e, em particular, a nossa família.

Publicado no dia 22/10/2020 por Beatriz Esperança