Jane Eyre, de Charlotte Bronte

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Este livro foi-me oferecido pela minha mãe quando eu tinha 12 anos, com uma dedicatória escrita por ela na primeira página, que dizia, designadamente, que “um livro é um amigo para sempre”. Esta frase, em particular no que toca a “Jane Eyre”, era mais acertada do que na altura eu podia pensar.

Creio que esta terá sido a primeira grande obra que li e ainda hoje é das minhas preferidas, nomeadamente pelo vocabulário utilizado, pela profundidade do caráter das personagens e pelo realismo da história (bem se diz na contracapa que “mesmo o triunfo final de Jane é um triunfo incompleto, à escala humana”). Distanciava-se, assim, da maior parte dos livros que já tinha lido até ao momento. Lembro-me, aliás, de que o vocabulário era de tal forma complicado para os padrões a que estava habituada que, durante a primeira leitura do livro, não percebi várias palavras! Mas isso, longe de ser um obstáculo, só me fez gostar mais dele: de cada vez que o lia, era como se se revelasse uma nova informação: sentia que passava a ter acesso a uma nova dimensão da história, de que não me tinha antes apercebido!

É possível que aches que esta é uma história “para raparigas”. De facto, trata-se de um romance improvável entre duas pessoas de origem social e meios económicos muito diferentes, e faz lembrar a Cinderela de certa forma. Numa época em que isso era um verdadeiro entrave às relações (hoje, se ainda o é, gosto de acreditar que tem muito menos peso), Jane Eyre e Edward Rochester desafiam os preconceitos e os ditames da sociedade para viverem plenamente o amor que os une. Até aqui, confesso, não estamos longe das histórias a que a Disney nos habituou.

"um livro é um amigo para sempre."

Mas, acredita, isto é só o esqueleto do livro. A obra não teria sido considerada um clássico da literatura se se resumisse apenas a um conto bonito sobre um amor impossível coroado, contra tudo e contra todos, por um “Felizes Para Sempre”. Há muito mais para além disso! É muito mais interessante, na minha opinião, ver, por exemplo, o choque de duas personalidades quase opostas, que, no fundo, consubstanciam duas posturas perante a vida e duas maneiras distintas de nos vermos enquanto seres humanos.


Mr. Rochester, por um lado, representa os excessos, as festas, a conversa inteligente, culta e bem-humorada de quem teve uma boa educação e aprendeu a arte das relações sociais. Viaja muito, não consegue parar muito tempo no mesmo sítio, como se fugisse de alguma coisa, e rodeia-se constantemente de amigos, de bebida, de eventos, de mulheres... Efetivamente, ele precisa que essa roda viva de diversões o ocupe, que o faça esquecer, que não lhe dê tempo para refletir na vida que tem, naquilo que fez e na pessoa que se tornou. É impulsivo, egoísta, com uma personalidade forte e original, às vezes cruel, e não mede as palavras nem as ações. Tem, apesar de tudo, bons princípios debaixo de algumas camadas de desilusão com a vida que o fazem procurar apenas o prazer imediato em tudo aquilo que faz - para que quando chegar ao fim ao menos sinta que “viveu”!

Jane, por outro lado, discreta, prestável e humilde, aprendeu desde cedo, por força das circunstâncias, a passar despercebida para não incomodar os poderosos. Os frequentes momentos de solidão por que passou na sua infância levaram-na a descobrir rapidamente o prazer da leitura e a ver nos livros o refúgio que as pessoas em seu redor não lhe proporcionavam.

"E o que é que importa se essa pessoa nunca existiu? Desde que nos clarifique o caminho quando estamos perdidos, desde que nos incentive a ser pessoas melhores pelo exemplo que nos dá, o que é que importa se é uma pessoa real, alguém que morreu há 2000 anos ou uma personagem de um livro?"

A Jane foi sempre um modelo para mim. Sobretudo numa altura em que a personalidade ainda se está a formar, fazem-nos falta exemplos que nos possam guiar as escolhas quando temos dúvidas. Faz-nos falta pensar: o quê que esta pessoa faria se estivesse na minha situação? Então, pouco a pouco, as caraterísticas da pessoa que admiramos começam também a tornar-se nossas.

E o que é que importa se essa pessoa nunca existiu? Desde que nos clarifique o caminho quando estamos perdidos, desde que nos incentive a ser pessoas melhores pelo exemplo que nos dá, o que é que importa se é uma pessoa real, alguém que morreu há 2000 anos ou uma personagem de um livro?

Ao longo de toda a minha adolescência, li este livro diversas vezes e foi sempre o meu preferido. Para além da história em si e do prazer que a sua leitura me proporcionava, “Jane Eyre” deu-me uma base, um centro, uma medida para avaliar as minhas escolhas em cada situação. Deu-me uma referência de correção, integridade e educação.

Agora já não o leio tão frequentemente como antes e a sua lembrança já não me ocorre constantemente quando tenho dúvidas sobre o que fazer ou como reagir em determinada situação. Gosto de acreditar que, pelo menos em parte, isso se deve ao facto de ter incorporado no meu próprio caráter algumas das suas normas de conduta, tendo-me tornado, por isso, mais autónoma nesses momentos. De resto, penso que me afastei dela simplesmente porque fui crescendo, fui vivendo e, como acontece com tantas outras coisas que nos acompanham a infância, a Jane foi ficando para trás, congelada num final feliz de um romance antigo, ainda que intemporal.

No entanto, como os princípios que transmite são de sempre e para sempre, ainda a leio e penso nela ocasionalmente.

Posso dizer com certeza que continua a ser a minha obra preferida, não só por ser ainda uma referência, mas também por lealdade, carinho e saudades de quem me foi guiando os passos e amparando as quedas ao longo de tantos anos.

Publicado no dia 23/03/2021 por Inês Morais Teixeira